Texto de Ana Carolina Sant’Anna e Beatriz Guarany
Arte de Priscila Vianna
Canção
Parece que eu sou
Zumbi dos Palmares quando sambo
O príncipe herdeiro dos quilombos do Brasil
Sou eu, sou eu, Soweto
Livre, Mandela é Zumbi que se revive
Exemplo pro céu
De outros países como o meu
Sou eu, orgulho de Zumbi
Que vem de Angola e de Luanda
Salve essa nação de Aruanda
Salve a mesa posta de umbanda
Salve esse Brasil-Zumbi.
— BOM GOSTO. 300 Anos. Intérprete: Grupo Bom Gosto. Roda de Samba 2, 2010.
No dia 20 de novembro, o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra, uma data que homenageia a luta e o legado de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do país, que foi morto em 1695 e se tornou símbolo de resistência contra a escravização. Instituído oficialmente pela Lei nº 12.519/2011, este dia nos convida a refletir sobre a história, a cultura e os desafios enfrentados pela população negra brasileira.
Porém, essa reflexão não é apenas sobre o passado. Celebrar a Consciência Negra é ir além da data comemorativa e mergulhar em um processo contínuo de aprendizado, questionamento e resgate de histórias. É compreender que a luta antirracista é um compromisso diário e que a negritude é parte fundamental da identidade brasileira.
A palavra "Sankofa" vem da língua Akan, falada por povos de Gana, e pode ser traduzida como "voltar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro". Representada por um pássaro que voa para frente enquanto olha para trás, Sankofa nos convida a revisitar a história, resgatando nossas raízes, aprendendo com as experiências de nossos antepassados, para compreender nossa identidade, e fortalecer as lutas contemporâneas.
Palmares, situado na Serra da Barriga, na antiga Capitania de Pernambuco, hoje Alagoas, foi mais que um refúgio: foi um lar para 20 mil pessoas, incluindo africanos escravizados, indígenas e brancos empobrecidos. Era um lugar onde a liberdade se tornava realidade, mesmo em meio a uma sociedade opressora.
Esse conceito está no cerne do Grupo de Estudos e Pesquisas Sankofa, que atua como um grito por liberdade intelectual e democratização do acesso à pesquisa. É preciso promover oportunidades para que grupos historicamente impedidos do acesso ao ensino formal aprendam a investigar, produzir conhecimento e sejam reconhecidas por isso. Um dos objetivos do GPSankofa é desafiar o elitismo acadêmico e valorizar as transgressões coletivamente construídas pelas comunidades negras na Diáspora, no passado, presente e futuro.
Ao longo da história, as narrativas sobre a escravização e a contribuição dos povos africanos para a formação do Brasil foram sistematicamente apagadas ou distorcidas. Esse processo, conhecido como epistemicídio, visava legitimar a dominação e o racismo, negando o conhecimento e as experiências de determinados grupos.
De acordo com Sueli Carneiro (2005, p.97):
“O epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. [...] Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc.”
Mulheres negras, em particular, têm sido duplamente invisibilizadas, tanto pela condição de gênero quanto pela racialidade. Seus saberes, lutas e contribuições foram sistematicamente silenciados e relegados ao esquecimento. A filósofa bell hooks (2019, p. 284) nos alerta que "na cultura do esquecimento, a memória sozinha não significa nada". Para que essa memória tenha valor, é necessário reconstruir narrativas, romper silenciamentos e dar protagonismo a quem foi historicamente apagado.
O Dia da Consciência Negra, portanto, não se limita a uma celebração. Ele é um chamado urgente à reflexão e à ação frente ao racismo que elimina saberes produzidos pelas comunidades negras em diáspora. É uma oportunidade para resgatar e amplificar as vozes negras, tanto na história quanto na academia. Essa mobilização se torna ainda mais relevante diante dos desafios persistentes enfrentados pela população negra no Brasil, como a violência policial, o desemprego, a intolerância religiosa e o contínuo apagamento de sua história e contribuições.
Autoras do texto: Ana Carolina Sant’Anna e Beatriz Guarany
Arte de Priscila Vianna
REFERÊNCIAS:
BOM GOSTO. 300 Anos. Intérprete: Grupo Bom Gosto. Roda de Samba 2, 2010. Disponível em: <https://www.letras.mus.br>. Acesso em: 13 nov. 2024.
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: <https://negrasoulblog.wordpress.com/wp-content/uploads/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2024.
hooks, bell. Olhares negros: raça e representação/bell hooks; tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019. Disponível em: <https://cpdel.ifcs.ufrj.br/wp-content/uploads/2020/10/bell-hooks-Olhares-Negros.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2024.
TODA MATÉRIA. Quilombo dos Palmares. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/quilombo-dos-palmares.> Acesso em: 13 nov. 2024.
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